quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Jornal Beira do Rio (Ufpa): Calor atrai barbeiro até o açaí



 
Tratamento térmico a 80°C durante 10 segundos  
garante segurança do consumidor.
por Marcus Passos / Agosto e Setembro de 2014
foto Mácio Ferreira
Conhecido pelos nomes juçara, palmiteiro, piná, uaçaí, palmito-açaí ou simplesmente açaí (Euterpe oleracea), o fruto redondo, pequeno e de cor roxa tornou-se um dos principais ícones da cultura e culinária paraenses. Ao longo de 14 anos, sua área de influência transpôs os limites amazônicos e ganhou adeptos por todo o Brasil.

No Estado do Pará, seu consumo ocorre principalmente pela polpa, acompanhada de farinha de tapioca ou mandioca. Em muitas residências, o alimento é consumido diariamente. “A família do meu pai é do Marajó e, mesmo morando em Belém, alguns costumes marajoaras foram mantidos em nossa família. O gosto pelo açaí é o mais forte deles. Eu bebo açaí todos os dias”, revela Karina Ailyn, estudante de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará.

Essa fruta, rica em vitaminas e fibras, tem, vez por outra, seu nome associado a uma doença comum na Região Amazônica, a doença de Chagas. Isso ocorre em razão da má higienização da polpa do açaí e da conservação inadequada do produto durante o transporte aos postos de venda.

Porém uma questão ainda intrigava muitos pesquisadores: o que atraía o barbeiro até o açaí, já que o inseto se alimenta apenas de sangue? Um estudo pioneiro coordenado pelo professor Hervé Rogez, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da UFPA, mostrou que a relação do barbeiro com o açaí está intimamente vinculada ao processo de fermentação do fruto.

A doença de Chagas é uma doença infecciosa causada por um protozoário parasita chamado Trypanosoma Cruzi. Sua principal forma de transmissão é por meio da ‘picada’ do barbeiro. Esse inseto hematófago alimenta-se de sangue de mamíferos, e, ao ‘picar’ o ser humano, elimina o parasita. Sem saber, as pessoas coçam o local afetado pelo inseto, facilitando a “entrada” do protozoário.

Os números de casos da doença no Pará estão ligados à transmissão oral dessa infecção. Na família da estudante Karina Ailyn, duas pessoas já contraíram a doença por meio do consumo do açaí, seu avô e sua prima. O primeiro acabou falecendo por conta da idade avançada e da associação da doença de Chagas com outras doenças. Sua prima foi diagnosticada precocemente e tratada a tempo. Mesmo assim, Karina Ailyn mantém a tradição familiar e continua consumindo o açaí.

Após surto da doença, pesquisas foram intensificadas

Em 2006, ano em que começou a pesquisa, houve um surto de doença de Chagas em várias cidades paraenses. Diante disso, o Ministério da Saúde acionou diversos especialistas para investigarem as causas dessa contaminação. O professor Hervé Rogez foi chamado para analisar o lado etiológico da infecção – a causa da doença.  
“Por meio da Secretaria de Estado de Saúde Pública (SESPA), fizemos um inquérito populacional com as pessoas infectadas nessas cidades. Passamos um questionário de hábitos para esses indivíduos, até convergirmos em algo em comum. Descobrimos que elas compraram açaí no mesmo estabelecimento e no mesmo dia”, revela o pesquisador.
Assim, quais fatores fariam o barbeiro ir em direção ao açaí? Em nenhum momento do seu ciclo de vida, eles entram em contato com frutos. Então, o que justifica o Trypanosoma cruzi estar contaminando esse típico alimento da população amazônica?

A partir dos anos 2000, houve uma explosão nas vendas do açaí, tanto no mercado nacional quanto no internacional. Com isso, muitas comunidades resolveram investir somente no açaí, com a perspectiva de maiores lucros. Ao ampliarem as plantações de açaizeiros, os ribeirinhos interferiram no ciclo alimentar dos barbeiros. Sem alimentos, esses insetos migraram do seu habitat para as casas dos ribeirinhos, em busca de sangue de mamíferos. 
Ao visitar a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, Hervé Rogez encontrou uma pesquisa que apontava quatro aspectos que fazem com que os barbeiros sejam atraídos pelos mamíferos: o CO2 que é liberado por esses animais; a umidade relativa, já que todos os mamíferos respiram, transpiram e exalam umidade; o calor emitido pelos corpos e a irradiação por ultravioleta.
Ao ser retirado da palmeira, as vassouras do açaí seguem para o processo de debulhamento, que é a remoção dos frutos dos cachos. O açaí é colocado em paneiros, que ficam organizados em frente à casa do ribeirinho, à espera da embarcação que fará o transporte. É nesse período que o fruto começa a sua intensa respiração e fermentação – mecanismo para obtenção de energia celular.
Após a debulhação, o açaí libera bastante calor. São 5 graus Celsius em cinco horas. Como exemplo, 10 paneiros de açaí equivalem a um adulto, no que se refere à produção de calor. Em decorrência dessa “respiração”, há uma produção acentuada de CO2. “O fruto respira, usa o oxigênio e, logo depois, ele fermenta. O barbeiro detecta o paneiro de açaí por essa produção de calor e de CO2”, afirma Hervé Rogez.
O caroço do açaí transpira, exalando cheiros comuns ao suor dos mamíferos. O barbeiro, ao receber esses sinais, identifica-os como sendo desses animais. O feromônio – substância química de atração sexual - seria mais um motivo para esses insetos serem encontrados nos paneiros. Pensando que são fêmeas, os barbeiros voam para acasalar. 
O inseto também pode pousar nos paneiros durante a viagem de barco. Ao fazer um voo, o barbeiro busca alimentar-se ou reproduzir-se. E, ao chegar aos paneiros de açaí e perceber que não há alimento, ele permanece ali, para restabelecer as forças usadas durante o voo, o que leva mais de 24 horas. Do porto, o açaí segue para a comercialização.

Termo de ajuste de conduta deve garantir segurança

Na literatura científica, as fezes do barbeiro – contendo o Trypanosoma cruzi – são produzidas apenas quando ele suga o sangue. “Porém, ao realizar uma simulação exercitando os barbeiros em alta velocidade por 15 minutos, como em uma trepidação de barco, verificamos que muitos deles haviam defecado, por causa do estresse sofrido. E como o transporte de açaí é bastante longo, isso pode ocorrer durante a viagem”, explica Hervé Rogez.
Com isso, foram criadas algumas normas para o manuseio do fruto em Belém, por meio da Instrução Normativa publicada no Diário Oficial do Estado em 2013. O documento consiste em um termo de conduta assinado por representantes dos agricultores e batedores de açaí, do Ministério Público, das Secretarias de Estado de Agrcultura e de Saúde Pública,além do professor Hervé Rogez, como representante da Universidade Federal do Pará. 
Os agricultores e transportadores comprometeram-se em tampar os paneiros e fechar os porões dos barcos. Os comerciantes (pequenos batedores) terão que fazer o tratamento térmico a 80°C durante 10 segundos, por meio da técnica de branqueamento, por causa do material fecal do barbeiro e de algumas bactérias. Já o setor industrial irá realizar a pasteurização, técnica do branqueamento em grande escala. Assim, a cadeia de comercialização ficará protegida.
Hervé Rogez destaca a importância do estudo, “Fomos os primeiros a descobrir as propriedades benéficas e maléficas do açaí”, afirma. Nesse sentido, a “Pérola da Amazônia” segue representando a cultura paraense. 



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