Tratamento
térmico a 80°C durante 10 segundos
garante segurança do consumidor.
por Marcus Passos / Agosto e Setembro de 2014
foto Mácio Ferreira
Conhecido pelos nomes juçara, palmiteiro, piná, uaçaí,
palmito-açaí ou simplesmente açaí (Euterpe oleracea), o fruto redondo,
pequeno e de cor roxa tornou-se um dos principais ícones da cultura e
culinária paraenses. Ao longo de 14 anos, sua área de influência transpôs os
limites amazônicos e ganhou adeptos por todo o Brasil.
No Estado do Pará, seu consumo ocorre principalmente pela polpa,
acompanhada de farinha de tapioca ou mandioca. Em muitas residências, o
alimento é consumido diariamente. “A família do meu pai é do Marajó e, mesmo
morando em Belém, alguns costumes marajoaras foram mantidos em nossa família.
O gosto pelo açaí é o mais forte deles. Eu bebo açaí todos os dias”, revela
Karina Ailyn, estudante de Comunicação Social da Universidade Federal do
Pará.
Essa fruta, rica em vitaminas e fibras, tem, vez por outra, seu
nome associado a uma doença comum na Região Amazônica, a doença de Chagas.
Isso ocorre em razão da má higienização da polpa do açaí e da conservação
inadequada do produto durante o transporte aos postos de venda.
Porém uma questão ainda intrigava muitos pesquisadores: o que
atraía o barbeiro até o açaí, já que o inseto se alimenta apenas de sangue?
Um estudo pioneiro coordenado pelo professor Hervé Rogez, da Faculdade de
Engenharia de Alimentos da UFPA, mostrou que a relação do barbeiro com o açaí
está intimamente vinculada ao processo de fermentação do fruto.
A doença de Chagas é uma doença infecciosa causada por um
protozoário parasita chamado Trypanosoma Cruzi. Sua principal forma de
transmissão é por meio da ‘picada’ do barbeiro. Esse inseto hematófago
alimenta-se de sangue de mamíferos, e, ao ‘picar’ o ser humano, elimina o
parasita. Sem saber, as pessoas coçam o local afetado pelo inseto, facilitando
a “entrada” do protozoário.
Os números de casos da doença no Pará estão ligados à
transmissão oral dessa infecção. Na família da estudante Karina Ailyn, duas
pessoas já contraíram a doença por meio do consumo do açaí, seu avô e sua
prima. O primeiro acabou falecendo por conta da idade avançada e da
associação da doença de Chagas com outras doenças. Sua prima foi
diagnosticada precocemente e tratada a tempo. Mesmo assim, Karina Ailyn
mantém a tradição familiar e continua consumindo o açaí.
Após surto da doença, pesquisas foram intensificadas
Em 2006, ano em que começou a pesquisa, houve um surto de doença
de Chagas em várias cidades paraenses. Diante disso, o Ministério da Saúde
acionou diversos especialistas para investigarem as causas dessa contaminação.
O professor Hervé Rogez foi chamado para analisar o lado etiológico da
infecção – a causa da doença.
“Por meio da Secretaria de Estado de Saúde Pública (SESPA),
fizemos um inquérito populacional com as pessoas infectadas nessas cidades.
Passamos um questionário de hábitos para esses indivíduos, até convergirmos
em algo em comum. Descobrimos que elas compraram açaí no mesmo
estabelecimento e no mesmo dia”, revela o pesquisador.
Assim, quais fatores fariam o barbeiro ir em direção ao açaí? Em nenhum momento
do seu ciclo de vida, eles entram em contato com frutos. Então, o que
justifica o Trypanosoma cruzi estar contaminando esse típico alimento da
população amazônica?
A partir dos anos 2000, houve uma explosão nas vendas do açaí,
tanto no mercado nacional quanto no internacional. Com isso, muitas
comunidades resolveram investir somente no açaí, com a perspectiva de maiores
lucros. Ao ampliarem as plantações de açaizeiros, os ribeirinhos interferiram
no ciclo alimentar dos barbeiros. Sem alimentos, esses insetos migraram do
seu habitat para as casas dos ribeirinhos, em busca de sangue de
mamíferos.
Ao visitar a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, Hervé
Rogez encontrou uma pesquisa que apontava quatro aspectos que fazem com que
os barbeiros sejam atraídos pelos mamíferos: o CO2 que é liberado por esses
animais; a umidade relativa, já que todos os mamíferos respiram, transpiram e
exalam umidade; o calor emitido pelos corpos e a irradiação por ultravioleta.
Ao ser retirado da palmeira, as vassouras do açaí seguem para o
processo de debulhamento, que é a remoção dos frutos dos cachos. O açaí é
colocado em paneiros, que ficam organizados em frente à casa do ribeirinho, à
espera da embarcação que fará o transporte. É nesse período que o fruto
começa a sua intensa respiração e fermentação – mecanismo para obtenção de
energia celular.
Após a debulhação, o açaí libera bastante calor. São 5 graus
Celsius em cinco horas. Como exemplo, 10 paneiros de açaí equivalem a um
adulto, no que se refere à produção de calor. Em decorrência dessa
“respiração”, há uma produção acentuada de CO2. “O fruto respira, usa o
oxigênio e, logo depois, ele fermenta. O barbeiro detecta o paneiro de açaí
por essa produção de calor e de CO2”, afirma Hervé Rogez.
O caroço do açaí transpira, exalando cheiros comuns ao suor dos
mamíferos. O barbeiro, ao receber esses sinais, identifica-os como sendo
desses animais. O feromônio – substância química de atração sexual - seria
mais um motivo para esses insetos serem encontrados nos paneiros. Pensando
que são fêmeas, os barbeiros voam para acasalar.
O inseto também pode pousar nos paneiros durante a viagem de barco. Ao fazer
um voo, o barbeiro busca alimentar-se ou reproduzir-se. E, ao chegar aos
paneiros de açaí e perceber que não há alimento, ele permanece ali, para
restabelecer as forças usadas durante o voo, o que leva mais de
24 horas. Do porto, o açaí segue para a comercialização.
Termo de ajuste de conduta deve garantir segurança
Na literatura científica, as fezes do barbeiro – contendo o
Trypanosoma cruzi – são produzidas apenas quando ele suga o sangue. “Porém,
ao realizar uma simulação exercitando os barbeiros em alta velocidade por 15
minutos, como em uma trepidação de barco, verificamos que muitos deles haviam
defecado, por causa do estresse sofrido. E como o transporte de açaí é
bastante longo, isso pode ocorrer durante a viagem”, explica Hervé Rogez.
Com isso, foram criadas algumas normas para o manuseio do fruto
em Belém, por meio da Instrução Normativa publicada no Diário Oficial do Estado
em 2013. O documento consiste em um termo de conduta assinado por
representantes dos agricultores e batedores de açaí, do Ministério Público,
das Secretarias de Estado de Agrcultura e de Saúde Pública,além do professor
Hervé Rogez, como representante da Universidade Federal do Pará.
Os agricultores e transportadores comprometeram-se em tampar os
paneiros e fechar os porões dos barcos. Os comerciantes (pequenos batedores)
terão que fazer o tratamento térmico a 80°C durante 10 segundos, por meio da
técnica de branqueamento, por causa do material fecal do barbeiro e de
algumas bactérias. Já o setor industrial irá realizar a pasteurização,
técnica do branqueamento em grande escala. Assim, a cadeia de comercialização
ficará protegida.
Hervé Rogez destaca a importância do estudo, “Fomos os primeiros
a descobrir as propriedades benéficas e maléficas do açaí”, afirma. Nesse
sentido, a “Pérola da Amazônia” segue representando a cultura paraense.
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