Em Afuá, realidade contraria números indicados no
Mapa da Inclusão Digital, da Fundação Getúlio Vargas
(por Brenda Rachit / Agosto e Setembro de 2014)
O mapa da inclusão digital, trabalho
executado pela Fundação Getúlio Vargas, em parceria com a Fundação Telefônica,
publicado em 2012, constatou, por meio de pesquisas quantitativas, que o município
de Afuá, no arquipélago do Marajó, tem, em média, 0,8% de acesso à internet.
Esse percentual reflete o baixo índice de conexão para muitas cidades da
Amazônia e é uma das questões discutidas pelo pesquisador Diogo Silva Miranda
de Miranda, em sua Dissertação Palafitas digitais: comunicação, convergência,
cultura e relações de poder em Afuá, defendida recentemente no Programa de
Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará
(PPGCom-UFPA).
Na pesquisa, foram observados outros
aspectos, além dos quantitativos, para compreender a reconfiguração do ambiente
comunicacional no município. Utilizando a perspectiva metodológica da
Cartografia, o pesquisador construiu um método próprio e com elementos da
Antropologia, Sociologia e Análise do Discurso. Ele selecionou teorias e
procedimentos que mais se adequavam aos seus objetivos.
A proposta inicial era discorrer sobre
tecnologias móveis, a “cibercultura de bolso”, pois, na cidade, a popularização
da internet está bastante atrelada ao uso crescente dos smartphones. Contudo a
pesquisa revelou outros caminhos e Diogo de Miranda propôs-se a “pensar o
cenário que se desenvolveu com a chegada da internet e das novas dinâmicas
criadas pela maneira como a web se relaciona com outras mídias em uma
determinada sociedade”, explica.
O pesquisador reconhece a importância
das estatísticas, mas alerta que é preciso estar atento aos contextos
específicos de cada região. Em viagens ao município, foi possível observar um
consumo de tecnologias digitais muito maior do que aquele constatado no Mapa da
Inclusão Digital. “Como posso encarar como verdadeiros esses números se, ao
chegar a Afuá, percebo que as pessoas utilizam intensamente os diferentes
aparelhos, como o dono do mercadinho que acessa a internet wifi por um
Iphone?”, questiona.
Trabalho de campo
releva singularidades
O Mapa da Inclusão Digital é elaborado
a partir de um recorte do que pode ser mensurado quantitativamente, normalmente
considerando os computadores pessoais e as linhas de telefonia fixa. Em muitas
cidades da Amazônia, o acesso à internet via celular e tablets é muito mais
frequente. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir
do próximo censo, irá considerar essas especificidades, como a rede móvel.
As particularidades afuaenses só
puderam ser percebidas quando o pesquisador esteve em campo. Diogo de Miranda
viajou três vezes à ilha durante a pesquisa. Muito mais do que descrever Afuá e
seus contextos, o pesquisador quis viver a dinâmica da cidade. “Partilhei um
universo em comum com esses sujeitos, o que nos tornou próximos, participantes
das mesmas dinâmicas e experiências. E isso foi fundamental para entender as
questões da pesquisa”, afirmou.
Segundo ele, as estatísticas acabam por
reafirmar a compreensão já estigmatizada sobre a Amazônia como um território em
“atraso”. “As singularidades da região necessitam de outras perspectivas de
análise”, destaca Diogo.
A internet popularizou-se em Afuá entre
2005 e 2007, porém, em períodos anteriores, houve outras tentativas de conectar
a comunidade à rede mundial de computadores. Algumas lan houses (centros de
acesso à internet) surgiram, mas não conseguiram se sustentar, pois a internet
ainda não havia alcançado o cotidiano da comunidade, como as rádios. Diogo observa
que o rádio, muito mais do que a televisão, exerce um papel central nas
relações sociais dentro da cidade.
Conversas agora se
desdobram no ciberespaço
Em Afuá, não há produção de telejornais
e o conteúdo regional veiculado pelas emissoras de televisão traz notícias de
Macapá e Belém, a maioria das vezes. Por isso, as rádios têm um espaço cativo
na comunidade. “As rádios articulam a dinâmica do cotidiano da cidade, dão
visibilidade às suas interações sociais”, avalia Diogo de Miranda.
O atraso na conexão de Afuá à internet
também decorreu das inúmeras barreiras físicas, pois o município é localizado
em região de várzea. A cidade, também conhecida como a “Veneza Marajoara”, não
possui ruas ou estradas, é interligada por pontes e sustentada por palafitas,
tornando difícil a instalação de um sistema cabeado de rede. Por isso, a
internet foi introduzida via rádio.
“A implementação da telefonia móvel e o
sucesso dos celulares no município fizeram com que a internet se popularizasse
e fosse incorporada ao dia a dia das pessoas”, explica o pesquisador. Hoje,
além da telefonia móvel, há três lan houses bastante frequentadas.
Com a chegada da internet móvel, as
pessoas apropriam-se de forma diferente desse recurso e isso ressignificou o
contexto sociocultural do município. A partir daí, a interação da comunidade
foi além da relação restrita ao rádio e à conversação verbal, ela se desdobrou
no ciberespaço. As pessoas passaram a convergir conteúdos dentro do que elas
ouvem na rádio, o que vivem e o que produzem na internet. Os radialistas
comunicam-se por redes sociais com os ouvintes, ao mesmo tempo em que
verbalizam na rádio essa interação.
Ao assumir um papel de mesmo valor
daquele exercido pela rádio, a internet ganha forças em Afuá. “Sem a rádio, a
internet não seria o que é hoje”, afirma.
Interação com o
universo digital é diferenciada
Em 2013, foi inaugurada a primeira
praça digital com acesso gratuito à comunidade, tornando-se um espaço coletivo
bastante representativo na inclusão digital da cidade. “Por que a Prefeitura
investiria em um projeto social pra estabelecer uma praça digital para uma
população que teria, em tese, 0,8% de acesso à internet?”, questiona Diogo de
Miranda. “É claro que há questões políticas nesse cenário, mas esse fato
ilustra a importância que a internet passou a ter na vida dessa população”,
avalia.
Mas, assim como na capital, as formas
de interação com o universo digital acontecem de maneira diferenciada entre os
afuaenses. Segundo Diogo Miranda, infraestrutura e fatores socioeconômicos
influenciam diretamente na maneira como cada indivíduo participa desse ambiente
e nas formas de apropriação das tecnologias. Além disso, há relações de poder e
de disputa entre os indivíduos: quem não está inserido no novo contexto sofre
certa marginalização, ao mesmo tempo, quem não participa também exerce algum
poder ao obrigar as instituições a criarem condições que permitam a
sua participação e a expansão do mercado.